Comecei a me sentir incoerente... então senti necessidade de por tudo o que estava dentro pra fora, pra olhar de longe e tentar entender como funciona...

sábado, 31 de dezembro de 2016

O tesouro

Em consequência da morte do herdeiro, da morte do herdeiro do herdeiro e da morte do herdeiro do herdeiro do herdeiro, foi decretado sucessor do trono o traidor.
Fez saber o monarca moribundo que aquele que tantas pedras lhe atirara deveria carregar o fardo de ser o próximo alvo. Convocou o pobre felizardo por carta secreta e selada, a qual teve resposta diligente, mas desprovida da alegria que se espera tais prêmios. Havia pois o reino, as terras, as festas, o tesouro....
Passadas as primeiras noites foi dominado pelo medo o antigo plebeu. Disse a todos que encontrou que retornaria quando se consumasse o fato, e correu sem olhar pra trás.
Estamos perdidos, diziam uns ministros. Não sabe, não quer, não assumirá. Posso assumir em seu lugar, dizia um outro. Nos resolveremos sem ele. Será um bom rei, dizia o embaixador vizinho. Conhece a dureza da tarefa, por isso a teme. Será esforçado e responsável, não se perderá em festas e deleites. Teme, pois não admite fracasso.
Passados alguns meses, recebe o dito em seu esconderijo a notícia de que está esgotado o tempo do medo e do segredo. O monarca está morto.
Apresenta-se no palácio o sucessor num esforço vão de esconder tremedeiras. É informado de que, antes de falar ao povo, deve conhecer o tesouro secreto real, aquele que apenas os monarcas tem direito de ver. Recebe a chave cravejada de jóias e deixa-se conduzir.
Ao entrar, depara-se não sem surpresa, com uma sala confortável, mas simples. No centro, um espelho. Mira-se em êxtase por minutos muitos, para então, com renovada certeza, ir falar à multidão.
Comete erros e acertos, como os reis todos. Um tanto de tradição e um tanto de renovação, como se esperaria de crítico tão ferrenho. Leva a cabo a missão com esforço admirável e boa teimosia e renova-se, de tempos em tempos, na sala onde todos imaginam ouro e jóias, mas ele só vê a si mesmo, cada dia um pouco diferente do anterior.